quarta-feira, 23 de maio de 2007

Estava com os olhos pregados. Cílios após cílios grudados com cílios após cílios. Eu conseguia sentir cada fibra que formava meu corpo, extremamente agitado, mas quieto. Eu estava pronta para levantar dali. Correr, tomar um banho, dar um beijo na minha mãe, dizer que amo meu namorado, e seguir com os meus 22 anos de vida.

Eu percebi que os meus primos estavam lá. A voz irritante do Pedrinho era de praxe. Toda vez que ele ligava lá em casa tentava me enganar fazendo falsetes em sua voz. Mas eu gostava tanto dele, que nem com interferência eu deixaria de reconhece-lo. Fiquei sabendo pouco antes que a namorada dele estava grávida, e que eles iriam se casar. A data seria especial para mim também, seria madrinha de casamento de uma das pessoas que eu mais tinha amado. Pedro ou Pedrinho, o nosso amor estava gravado em algumas arvores do sítio da família, que já havia sido vendido há tantos anos.

Eu sentia que não podia fazer mais nada, e que a minha pele estava se dissolvendo á medida que a madrugada fria passava. Minuto após minuto, eu ia reconhecendo o misterioso cheiro do fim: algo como madeira, vinho tinto, mofo e lágrimas. Eu queria poder abraçar meu travesseiro, ou dormir com a minha mãe na sala como quando algo saia errado.

Eu reconheci a voz que me fizera quase saltar e me arrepender de tudo. Lábio com lábio, a ferida da minha vida começava a se fechar e a luzinha no fim do túnel começava a perder o imenso brilho. Eu ouvi o choro inquietante da minha mãe. A mulher que já havia usado desse recurso inúmeras vezes. Sem sucesso, a minha mãe passou metade da juventude arrumando uma forma de se separar do meu pai, homem que batia em mim e na minha irmã, que abusava de outras garotas e quase nunca tocara a minha mãe. Mulher que lutou para que eu pudesse ser extremamente feliz, e uma criança como igual. Tem um vídeo, na prateleira do meu quarto, que a minha irmã gravou em uma das apresentações que a escola fazia no dia das mães. Cada mãe estava na frente do seu filho para ouvir uma canção, e eu estava toda tímida e mais ria do que falava. Na época eu vira o vídeo e achava um máximo, eu estava linda com aquela Maria Chiquinha. Mas da última vez eu parei de olhar para mim e olhei para a minha mãe. Os olhinhos cheio de lágrima, olhando fixamente para a filinha de 7 anos de idade. Parecia que não importava quanto a luta fosse grande, ela transparecia que sabia que valia a pena por momentos como aquele. E tudo que eu ouvi aquele dia foi um choro degradante, desgastante, mórbido. Eu fizera não valer a pena todo o esforço da minha mãezinha, que gerara a minha vida mesmo pondo em risco a sua saúde, seus estudos e a sua liberdade.

A pior sensação do mundo foi aquela de estar acorrentada por cada centímetro do meu corpo a uma dor que estava fora do comum e que ia além do planeta terra. Não poder chorar, não poder gritar, esvaziar, correr, sair dali. Angustia e medo se misturavam á cada vez que alguém tocava o meu rosto e sussurrava palavras batidas para a minha mãe. E por mais esforço que eu fizesse o meu corpo ia contra mim, e tudo que eu raciocinava para fazer não durava mais do que 20 segundos, e em seguida se apagava.

O meu namorado chegou muito tarde. Talvez o dia já estivesse acordando para mais um dia que eu não iria participar. Eu lembro que mais ou menos nesse instante uma grande confusão se instalou, e o que parecia antes calmo e até sereno se tornou desesperador. Eu senti o cabelo com gel e os óculos do meu namorado pousar sobre o meu peito que molhou, encharcou. E ele dizia : “Minha menina, minha menina ... Por que, minha menina?”. E essas palavras me eram familiares. Certa vez ele, o Júlio, havia ganho a aguardada promoção de emprego. Eu fui no apartamento dele, me tranquei lá dentro, fiz lazanha congelada, pendurei bexigas coloridas na sala, escrevi um cartaz, que dizia: “Parabéns, meu menino! Eu te amo mais do que me amo. Eu te amo para sempre”. Quando deu 11 da noite, ele entrou e me viu, mais simples do que nunca, com o maior sorriso que meu rosto moldou nesses 22 anos de vida. Ele se jogou em cima de mim, no sofá, e respondeu ofegante e extremamente feliz : “Minha menina, minha menina ... Porque minha menina? Estou muito feliz”. E me deu o beijo que até em certas condições, eu não havia esquecido. Quente, aquele beijo que ainda me mantinha quente naquele dia que acabara de iniciar, e que ele repousara sobre o meu peito que o pertencia.

Senti tudo se movimentar, levei um tranco daqueles. Senti o toque distante do meu melhor amigo, do meu avô, do meu primo e do meu pai que reaparecerá depois de tantos meses nem notícia. Começamos a caminhar por um lugar enorme com cheiro de flores e almas presas. O meu coração que nem batia mais disparou contra tudo aquilo, e eu ameacei fugir da prisão que eu mesma havia criado. Não dava. Como descrever a quão presa eu estava? E eu sabia que faltava pouco tempo.


A chuva batia contra o caixão, e o cheiro de flores retornava a ser forte à medida que alguém mandava para a mim com a ilusão que eu fosse pagá-las. Eu senti a terra desmoronar sobre mim, assim como a ignorância de não ter percebido que essa fora à única oportunidade de estar viva.


Dois dias antes eu planejei a cena, escrevi a famosa carta de suicídio que no fim nem foi entregue. Morri sem dizer ao resto do mundo o quanto eu os amava, e o quanto eu era grata por eles tentarem me manter viva. Joguei-me no vigésimo quinto andar. Estava agora presa á cheiro de vela, e vestida de madeira, revestida de terra, cheia de grades em minha volta. E quais seriam os motivos para uma garota de 22 anos cometer suicídio? Eu não sei. O mundo era tão perfeito que eu tive vontade de estraga-lo. E por isso os meus familiares e amigos se sentiram culpados, gerando um segundo suicídio: o da minha mãe. Eu não tive a chance de ver o Pedrinho entrar no altar, eu fiz a minha mãe acreditar que tudo foi em vão, e eu abdiquei o meu namorado de ser pai. Pai do filho que eu carregava comigo há quatro meses. E não deixei o meu filho ter tido a chance de ver nem um único pôr do sol, e nem ter lutado com as suas próprias vontades para viver em paz.


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· No mundo suicidam-se diariamente 2000 pessoas.
· Nos Estados Unidos são 30.000 suicídios por ano (quase 100 por dia).
· No geral, 7% dos suicidas sofrem de dependência alcoólica.
· Aproximadamente 90% de quem tenta, avisa antes.
· 70% dos suicídios ocorrem em decorrência de uma fase depressiva.

Um comentário:

Filipe disse...

sei lá.
acho que a desição de se maatar, nao é uma desição.
alguem tem a frieza de planejar seu proprio crime?
e tambem é um egoismo maior, que se foda. viva para os outros, sua mae nao vive pra voce e seu irmao?
é similar...
nao deve ser bom morrer.
eu tenho essa curiosidade, e quem nao tem?
o que acontece quando o olho fecha?
sao tantas perguntar, que eu nao me arrisco responder.
espero que o tempo me de essa respostar, e que ele demore e me de coisas antes...
muitas outras coisas.