sexta-feira, 22 de junho de 2007

Ana, claro, Ana Clara.

Ana Clara abriu os olhos naquela manhã sem saber o que a esperava, tão pouco o que fizera despertar. Nos primeiros cinco segundos tentou assimilar a nova cor que a parede do seu quarto tomara, o rosa claro virou azul sutilmente mesclado com branco puro. Tentou lembrar das estações do ano que ecoavam como subdivisões de tempo de vida desde que era menina. No verão ninguém morria, todos iam para a praia comer milho com sal e brincar de sereia no grande mar. No outono tudo terminava para começar de novo. O inverno lhe trazia o cheiro esquisito de álbum de família em branco e preto. A primavera era como o asfalto molhado por pétalas de flores aonde ela pulava para sentir a deliciosa vibração sonora que seus pés produziam sobre as rosas da árvore que tinha em seu quintal. Deveria, aquela manhã, estar em uma estações recém inventada em que tudo que sentia era liberdade.

Ana Clara teve medo de olhar para os lados e continuou mirando o seu novo horizonte de cores desiguais. Resolveu então sentir um pouco do seu próprio gosto. Gosto de Ana, que traduzia em sua saliva pouco experimentada. Reconheceu o seu gosto e ficou surpresa por reencontrá-lo no lugar que sempre esteve a sua disposição: Sua boca.

Certamente era 1981, e se ainda fosse carnaval haveria muito tempo para curtir o ano todo. Se já fosse o fim de janeiro esperaria pela páscoa e o seu sabor agradável. Sabor de abril. Se já estivessem em festas juninas aguardaria com ansiedade as férias de meio de ano, quando ia para praia e dormia sobre o sol esperando a lua se mostrar jovem para poder acordar. Ana Clara sentiu-se feliz por ser jovem. Isso fazia com que ela pensasse em ligar o rádio e dançasse com as amigas, tomando coca-cola encostada no carro de um novo garoto bonito que pelo bairro aparecesse.

Ana Clara de qualquer coisa. Sobrenome que sabia que estava ao alcance das suas mãos. Mãos que estavam segurando o lençol com força. Lençol que se movia delicadamente sobre o vento de uma janela escancarada. A mente de Ana queria levantar para fecha-la, seu corpo pedia mais alguns minutos.

A mecânica perfeita na qual seus olhos piscavam. Abria, fechava, abria, fechava. Sem saber, Ana Clara percebeu que a maior prova de sobrevivência é piscar os olhos que se movem sozinhos em busca do que precisam. Quando os olhos de Ana Clara acharam que estavam os suficientes úmidos, Clara começou a chorar. De repente o seu corpo estava fazendo a mesma coisa. Pulsando, transcorrendo, dividindo, vitalizando, pulsando, respirando.

Ana Clara lembrou da tia Sônia que lhe ensinara as letras do alfabeto ‘Com A escreve Ana e a-mo-ra’. Da sua mãe ‘Aninha, meu amor, lê a placa. Olha, bem vindo ao Rio de Janeiro, chegamos!’. A Lucynha, sua prima de segundo grau. Lembrou por último de Beto, e os seus versos apaixonados ‘Ana de noite, Ana de dia. Ana que vive, Ana que brilha. Ana, claro, Ana Clara’. Tentou balbuciar algumas palavras, e indecisa em qual escolher para aquele momento especial resolveu cantar a música que mais te fez sentido.

"baby, compra o jornal vem ver o sol, ele continua a brilhar, apesar de tanta barbaridade, baby escuta o galo cantar, a aurora dos nossos tempos, não é hora de chorar, amanheceu o pensamento".

O seu rosto queria sentir a adocicada enxurrada de lágrimas que o seu coração mandava. Lá fora começava a fazer frio e a janela aberta não fazia mais sentido. A enfermeira entrou a pressas no quarto para certificar que a paciente estaria bem. Ana cantou repetidamente a música da sua vida para ser notada. A enfermeira abriu um largo sorriso que denunciava que estivera ao lado de Ana por muito tempo. Ana acordará naquela manhã de 1995, 14 anos após ter se apado para o resto do mundo. Em coma não pode acompanhar os últimos acontecimentos. Seu pai morrerá no inverno passado. Beto havia casado no outono de 1992. No verão retrasado as praias ficaram mais perigosas. Em 1994 o Brasil ganhou uma nova moeda. Barão vermelho acabou, cazuza viveu breve. Os meninos não usavam mais botas, vestiam tênis. E Ana? Ana acordara com a certeza da primavera que a esperava, a primavera de todas as estações daquele ano que reservava notas de liberdade que a vida recomeçava a compor.

Um comentário:

sourmemories disse...

ain, logo no começo eu fiquei com medo dela morrer ._.
hasuidhuiashduisa

lindo, mary, pqp!!!