quarta-feira, 18 de julho de 2007

Que noite agradável – pensou enquanto misturava o açúcar com o café. Marília estava exclusivamente estonteante naquela noite de tempo úmido que ameaçava chover. A grande cidade funcionava como uma típica terça-feira, o mecanismo do relógio anunciava, o comercio fechava e os grandes restaurantes davam, em portas abertas, boa noite ao tempo nublado. Marília estava em um deles, gastando e queimando o tempo que ainda faltava. Resolveu, tempo depois, ir embora de uma vez. Deixou o dinheiro por de baixo da xícara quente e de lá partiu.

Roberto havia riscado cada dia do calendário, e finalmente não restava mais espaço para ser marcado. A cidade estava fria e seca, e o grande casaco de couro fazia peso sobre o seu corpo que sentia saudade. Fechou o zíper das malas, respirou fundo e mirou-se no espelho da recepção do hotel. Pensou em si com orgulho, por ter abdicado tempo da sua vida e ter estado lá. Gostava do que via só por saber que em outro estado estava grande razão da sua satisfação pessoal. A razão que não poderia ser refletida naquele espelho, mas que em questão de horas estaria na frente dos seus olhos. Com essa motivação, respirou mais uma vez e ouviu a buzina do táxi que lhe esperava. Deixou o cheque por de baixo do balcão de mármore e de lá partiu.

Marília e Roberto se reconheceram logo que se cruzaram. Ela era estudante de medicina e ele era médico recém formado. Roberto estava sentado junto da cama de uma paciente terminal em uma das alas do hospital em que trabalhava. O seu sorriso branco da cor do seu uniforme acalmava a paciente e a fazia esquecer das horas. Marília em um dos corredores se atrapalhava com os papeis e as infinitas anotações em sua prancheta ao mesmo tempo que levava bronca do orientador por estar rindo alto demais. A turma de 15 futuro doutores se aproximava da ala mais delicada. A tremenda curisoidade de Marília fez com que ela entrasse antes de todos na ala dos pacientes terminais. Pediu licença, olhou para os lados, sorriu e disse olá. O médico que estava de costas, logo virou. Viu Marília e tudo congelou. Reconheceu naquele olhar perdido e desorientado o mesmo olhar que tinha em tempos de faculdade. Sorriu. E então foi a vez de Marília observar o sorriso que ria com a paciente e que mostrava profunda atenção e carinho aos pacientes. Sonhou em ser igual á ele algum dia. Ele se aproximou e estendeu as mãos, Marília o surpreendeu com um beijo no rosto e seguiu em direção á cama. – Onde está o resto? Perguntou Roberto. – Eu não sei. Eu acho que me perdi. Estava louca para estar aqui rápido. Respondeu Marília com um sorriso envergonhado. Marília começou a conversar com a paciente e Roberto se afastou por um tempo. – Com um médico bonitão desses nem é tão ruim estar aqui. Não é? Falava Marília enquanto ria. – Não é. Na verdade, o que eu mais gosto nele é o sorriso. Se eu tivesse pelo menos 18 anos e tivesse a certeza que sairia daqui eu daria meu telefone á ele. Disse em tom de sussurro a menina. Marília olhou para baixo e disse: - Você vai sair daqui, e ainda vai viver muito. Marília deu o seu telefone á menina fazendo-a prometer que a ligaria assim que saísse do hospital, curada. Foi embora á fim de encontrar o resto da turma. O médico voltou procurando a estagiária mas nada encontrou. Sentou na cama, ligou a tevê e lamentou: - Já foi embora, não é? A jovem paciente estendeu as mãos e entregou o papel com telefone de Marília. Achou que eles poderiam dar certo, e se realmente dessem, ele sorriria mais e como conseqüência ela esqueceria as horas.
Foi assim o primeiro passo. Depois disso tudo se desenrolou. Namoraram por pequenos seis meses, casaram, e no terceiro ano de casamento teriam que se separar por longos dez meses. Roberto havia recebido uma proposta irrecusável de emprego, na parte Sul do país. Marilia resolveu não acompanhá-lo já que tinha substituído o marido no emprego do hospital em São Paulo.

Quatro estações depois, algumas tempestades de saudade, os plantões intermináveis e as longas horas no telefone, enfim, o dia. Marília formigava dos pés as cabeças, não saberia ao certo como agiria. Depois de dez meses o seu cabelo havia escurecido. E se ele não gostasse? Dentro do carro ela via os primeiros pingos de chuva cair sobre o painel. Cantarolava e batia os dedos de forma rítmica no volante. Quando o farol fechou se distraiu com a sua aliança de ouro e mordeu os lábios. Estava realmente muito perto.

Roberto embarcara no vôo. Na mala um mundo de lembranças gaúchas, no peito lembranças da paulista do riso fácil. Olhou pela pequena janela oval, por sorte conseguiu sentar-se em lugar tão privilegiado. Como de praxe em seus costumes, olhou e tentou decorar cada uma das pessoas que no mesmo vôo estavam. Ficaria o resto da viagem tentando imaginar da onde eles viam, se estavam de férias, o que iriam encontrar, e o que esperavam. A ansiedade habitual e a rápida digitação no pequeno celular, aonde mandou uma mensagem á esposa. Uma voz firme e simpática disse – “Bem vindos ao vôo 3054 com destino á São Paulo.” E particularmente á Roberto, bem vindo ao lar. Apertou os cintos e comemorou. Um pequeno garoto que estava ao seu lado o desejou boa viagem. Lá foram eles.

O celular começou a apitar de dentro da bolsa e Marília se agitou. Mas resolveu ver o que era só quando chegasse ao aeroporto. Apesar de distraída era uma boa motorista. A quantidade de carros e motos fazia a grande cidade se tornar pequena e estreita. A chuva apertava junto com o coração de Marília. Chegou depois de um tempo, estacionou o carro e procurou a sala de desembarques. Sentou do lado de uma senhora simpática que lhe ofereceu um pedaço de sua barra de chocolate. Marília nunca devorou um chocolate tão rapidamente. Percebeu então que entre todos era a mais nervosa. Não conseguiu esconder o sorriso largo misturado com as tantas novidades que iria contar á Roberto. Era mais do que uma sala de espera, era uma sala de reencontros.

O grande relógio digital indicava em segundos aquilo que parecia durar séculos. Uma mulher com o aparente uniforme do aeroporto resolveu ligar a televisão. Marília ficou feliz com a novo recurso para se distrair, quem sabe assim tudo passaria rápido. Um vento gelado passou sobre a sua espinha quando a música do plantão resolveu ecoar sobre o enorme salão. Engoliu e olhou para os olhos da senhora, que corresponderam. Um tragédia anunciada para os olhos atentos de milhares de brasileiros, o mesmo jornalista, o mesmo canal e uma mesma tragédia. No mesmo instante o salão ficou agitado e os funcionários se agitavam de um lado para o outro correndo pelas mais variadas direções.

Marília estava diante e diretamente envolvida com o maior assassinato social da historia daquele país. As pessoa passavam correndo diante de seus olhos e ela mal conseguiu piscar. Tudo parecia em câmera lenta, ela já não conseguia ver a televisão, mas os seus ouvidos só conseguiam acompanhar a notícia. Marília se sentiu enjoada e seu cérebro não funcionava mais. O seu coração batia rápido e sua vitalidade começava a desaparecer. O suor escorria no casaco de frio, os pelos se arrepiavam e o seu bebe dera um chute em sua barriga exatamente naquele momento. Sem pensar muito foi rápido em direção á mensagem do seu celular que havia momentaneamente esquecido. Rezou com mais intensidade do que a vida toda em apenas cinco segundos. “Ler” – “O nosso filho vai ser gremista, amor! To indo voar no céu para chegar até o azul dele. Eu te amo eternamente”.

Marília olhou para os lados, já não via a senhora. Estava sozinha, ajoelhou no chão e entre lágrimas sentiu a pior dor da sua vida. Desabou em cima do desastre, se sentiu tonta e não sentia-se mais feliz. Colocou a mão na barriga e a partir de então não sabia como seria. Levantou e desatou a correr, queria a lista dos nomes, queria saber o que tinha acontecido. Depois de muita espera foi orientada a entrar em uma sala com poucas pessoas. Seria anunciada a lista oficial de passageiros através de um rádio transmissor. Ela que ouviu aquele nome quando o padre os tornou marido e mulher, ela que havia dito sim. Roberto. Assim como Ana, Michele, Beatriz, Rodrigo e mais duas centenas de mortos. Para ela não importava se a culpa era dos militares ou dos militantes, um erro de mecânica ou da sorte. Não iria relaxar e gozar, abaixar na metade as bandeiras, usar faixas pretas nos jogos do pan ou os pêsames do presidente da republica. Marília perdeu tudo e á si mesma. Perto dali a paciente abriu a janela e percebeu que agora as horas passariam rapidamente. Os sorrisos perdidos em um sistema falho e um triste fim.

“A nação está viva, o que está podre é o poder.”

2 comentários:

Gabriela disse...

oi, eu sou amiga da nicole, da ete. esse seu post foi o melhor de todos. quando você diz "...não importava se a culpa era dos militares ou dos militantes, um erro de mecânica ou da sorte..." tem toda a razão. nada vai mudar. enfim, parabéns, não só por esse post, mas pelos outros também.

Anônimo disse...

Que muito FODA seu texto Mary !
Ainda te encontrarei numa fila duma livraria esperando pra receber seu autógrafo no meu livro escrito por você

AshuAUhAHUsAUHsUHAS

Bjooo s2